A incidência, ou, não incidência da contribuição patronal sobre o terço de férias.
Num país que ainda sofre com viradas jurisprudenciais frequentes, a preocupação com a oscilação de decisões continua na ordem do dia. Entre outros tantos casos, é o que ocorre no RE 1.072.458/PR (Tema 985 do STF), em que restou decidida a incidência da contribuição previdenciária patronal sobre o terço de férias dos trabalhadores, alterando entendimento anterior cristalizado no STJ durante mais de seis anos desde o julgamento do REsp 1.230.957/RS (Tema 479 do STJ). Os valores envolvidos alcançam R$ 80 bilhões, segundo cálculos conservadores.
No Tema 479 de Recursos Repetitivos, julgado em 26/02/2014, o STJ havia fixado a tese de que “a importância paga a título de terço constitucional de férias possui natureza indenizatória/compensatória, e não constitui ganho habitual do empregado, razão pela qual sobre ela não é possível a incidência de contribuição previdenciária (a cargo da empresa).”
Alterando diametralmente esse entendimento ao julgar o mérito do Tema 985 da Repercussão Geral, em 29/08/2020, o STF estabeleceu a tese de que “É legítima a incidência de contribuição social sobre o valor satisfeito a título de terço constitucional de férias”.
Não é demais lembrar, por mais trivial que seja, que é obrigação do Poder Judiciário atribuir sentido único ao direito e orientar a sociedade a partir da criação de uma pauta de conduta estável, íntegra e coerente (art. 926, CPC). O Poder Judiciário não pode se comportar como a Hydra de Lerna, com suas várias cabeças, sobretudo para o cidadão comum que não compreende a distribuição das competências judiciárias entre os diversos tribunais.
Quando o dever de estabilidade é descumprido, mormente no seio dos tribunais superiores, a quem mais caberia zelar pela uniformidade, deve entrar em cena instrumento intrassistêmico que garanta um mínimo de segurança jurídica aos jurisdicionados afetados por aquela decisão: a modulação de efeitos prevista no art. 927, §3º do CPC. Embora apenas facultada a sua aplicação pela norma processual, há casos em que sua aplicação se torna compulsória.
O ideal seria que, a cada virada jurisprudencial, o Supremo pudesse perguntar que grau de confiança o precedente revogado gerou nas pessoas e empresas afetadas. Certamente, se o fizesse no caso do RE 1.072.458/PR, não seria surpresa se deparar com intensa apreensão dos que se sujeitaram à decisão do STJ, diante de futuras incertezas. Afinal, vigorava mansa e pacificamente precedente vinculante produzido pela Corte Especial do tribunal com competência para dar a última palavra em matéria de lei federal.
A LINDB, reformada pela Lei 13.655/2018, em seu artigo 23, estabeleceu uma espécie de cláusula geral de estabilidade ao impor a preservação de situações jurídicas pretéritas em caso de nova interpretação conferida por tribunal. A norma determina, nesse sentido, a aplicação de um regime de transição para que o novo dever seja cumprido “de modo proporcional, equânime e eficiente, sem prejuízo aos interesses gerais”. Tal regime de transição nada mais é do que a modulação de efeitos da nova interpretação para a definir a partir de quando ela terá lugar.
O que se espera no RE 1.072.458/PR é a aplicação da eficácia prospectiva parcial (prospective overruling), atingindo apenas o caso-piloto julgado pelo STF e casos futuros que tratem da mesma matéria, preservando-se os casos pretéritos, ainda que pendentes de julgamento definitivo, já que ao tempo da distribuição da petição inicial não havia mais controvérsia jurídica sobre a não incidência de contribuição previdenciária sobre terço de férias.
Embora a regra geral do common law seja a de que os efeitos de uma decisão vinculante devem retroagir para alcançar casos anteriores, existem critérios doutrinários, norteados pela preservação da confiança justificada dos jurisdicionados, para definir quando tais efeitos devam ser prospectivos. A saber: se houve decisões anteriores do STF sinalizando eventual modificação de jurisprudência futura (técnica do signaling[1]ou anticipatory overruling)[2], ainda que em obiter dictum; se havia posições doutrinárias tecendo críticas ao precedente do STJ, posteriormente superado pelo STF; se havia alguma espécie de clamor popular, sobretudo proveniente de grupos especializados da sociedade organizada, que houvesse atuado contra o precedente superado[3].
Nada disso ocorreu até que fosse julgado o RE 1.072.458/PR. Portanto, uma vez inobservados tais critérios balizadores, não há razão suficiente para deixar de aplicar a técnica de modulação de efeitos prospectivos ao precedente.
Vale também ressaltar que, no caso em análise, o STF silenciou sobre a suspensão nacional das demandas que versassem sobre a matéria (autorizada pelo art. 1.035, §5º, do CPC), no momento do reconhecimento da repercussão geral da controvérsia em 23/02/2018, deixando de sinalizar eventual preocupação com as demandas em curso. Além disso, vários pedidos de suspensão nacional restaram indeferidos pelo ministro André Mendonça, atual relator do processo, desde a drástica alteração de entendimento.
Com isso, as instâncias ordinárias do poder judiciário passaram a aplicar o novo entendimento de maneira irrestrita, inclusive em casos que tratam de fatos geradores anteriores ao julgamento de mérito pelo STF, quando ainda vigente o entendimento consolidado pelo STJ no Tema 485 dos Recursos Repetitivos, desconsiderando a necessidade de modulação dos efeitos da decisão, em clara violação da confiança dos jurisdicionados.
A decisão a respeito da modulação de efeitos no caso em comento, inicialmente pautada para o dia 31/08/2022, ainda será definida em sede de embargos de declaração opostos contra o acórdão de mérito. O julgamento havia sido iniciado no plenário virtual em abril de 2022 (com o placar de 5 a 4 pela modulação de efeitos), mas após o pedido de destaque do ministro Luiz Fux, o julgamento foi deslocado para o plenário físico, conforme regimento interno do STF, o que torna sem efeitos os votos proferidos no plenário virtual, salvo o do ministro Marco Aurélio, relator originário, agora aposentado.
Muitos contribuintes aguardam o desfecho positivo de inúmeras ações judiciais de repetição de indébito, crentes na jurisprudência vinculante firmada pela Corte responsável por dar a última palavra em matéria federal. Outros, que legitimamente não recolheram os tributos sobre o terço de férias dos trabalhadores, temem a cobrança retroativa de valores estratosféricos da ordem de bilhões de reais. Não é pouca coisa. Se não houver previsibilidade institucional que permita aos cidadãos e empresas pautarem suas condutas e estratégias de negócio, deveremos assumir que o Estado de Direito falhou miseravelmente.
[1] Ao operar o anúncio público, alertando sobre a possível revisão do entendimento jurisprudencial, o tribunal transfere o risco dos prejuízos pela alteração da estabilidade para o particular. Isso porque, a partir desse momento, espera-se que o particular deva alterar sua conduta em observância à sinalização de que tal padrão decisório será desconstituído
[2] Deixa-se de aplicar precedente que está em vias de ser revogado.
[3] Muito pelo contrário, a Associação Brasileira de Advogados Tributaristas (ABAT), a título ilustrativo, interveio nos autos do RE 1.072.458/PR para sustentar sua posição contrária à retroatividade dos efeitos da decisão de mérito.
Frederico de Oliveira Ferreira – Mestre pela Universidad de Salamanca (Espanha). Pós-graduado em Direito Processual pelo IBMEC. Pós-graduado em Direito de Empresas pela UGF. Advogado
Philippe de Oliveira Nader – Mestre em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (CEUB). Pós-graduado em Direito Processual Civil pela PUC-Rio e em Direito Empresarial pelo IBMEC-Rio. Advogado
Fonte: Site Jota Jornalismo