O erro da tentativa de criminalização do não pagamento do ICMS
Em agosto do ano passado, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que deixar de recolher o ICMS declarado é apropriação indébita, portanto, constituindo crime contra a ordem tributária.
A Decisão causou espanto a toda classe empresarial e jurídica. O processo tratava-se de um casal de empresários de Santa Catarina que há alguns anos estavam passando por dificuldades financeiras e não vinha recolhendo o ICMS declarado. Com o resultado negativo, os advogados do casal recorreram ao Supremo Tribunal Federal na tentativa de reverterem a decisão.
No tribunal, sob a relatoria do Ministro Barroso, o processo foi encaminhado para Julgamento Colegiado pelo Pleno do STF.
Inicialmente, é preciso entendermos, legalmente, o que é o crime tributário neste caso concreto, o qual reside disposto no art. 2º da Lei 8.137 de 1990:
Art. 2º: Constitui crime da mesma natureza (contra a ordem tributária):
II – deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos.
Pena: detenção de 6 meses a 2 anos, e multa.
A leitura sumária do artigo pode levar o leitor a concordância do julgado, porém, numa interpretação real e sistemática, é evidente que INEXISTE crime contra a ordem tributária na forma culposa. O tipo penal exige o dolo (intenção), a vontade de praticar tal conduta, qual seja, o não pagamento do tributo.
Ademais, essa conduta dolosa pode ser exemplificada quando o contribuinte omite informações do fisco, presta declarações falsas, fralda a fiscalização ou por fim, deixa de fornecer documentos obrigatórios como notas fiscais e equivalentes. Nestas condições, pode-se admitir que o contribuinte seja tipificado nos crimes contra a ordem tributária.
Contudo, não foi o que decidiu recentemente o STJ, e, não é o que já percebemos que pensa o Ministro Barroso do STF. A questão é delicada, complexa, e não poderia ser diferente quando temos um sistema tributário nacional dos mais complexos do mundo.
Em recente audiência pública realizada no Supremo Tribunal Federal, onde foram convidadas empresas, procuradorias federais e estaduais, entidades de classe, advogados tributaristas e empresariais, o ministro reconheceu o quanto é melindroso o tema em sua fala:
“Na minha vida como juiz eu sempre procuro fazer o certo, e uma vez que a gente sabe o que é certo, basta ter a coragem moral de fazer. O difícil na vida é quando a gente não tem certeza do que é o certo. E por esta razão eu convoquei essa reunião”
Mais adiante também afirma:
“Quando um comerciante recolhe adequadamente os seus tributos e o outro não o faz, você cria uma situação em que quem descumpre a lei tem uma vantagem competitiva sobre quem cumpre a lei. Portanto, não é ser contra ou a favor de empresários, é que muitas vezes o comportamento de um empresário prejudica o outro empresário”
“Acho que estaremos de acordo também que a exacerbação do direito penal talvez não seja um caminho ideal hoje, nas circunstâncias do Brasil. Por outro lado, acho que o bom negócio que muitas vezes é o não recolhimento tributário também é altamente detrimental para o país de uma maneira geral e a criação de vantagens competitivas para quem não é correto também não é uma situação desejável”
Entendemos a forma de pensar do Ministro Barroso, mas precisamos, com cautela, separar – o joio do trigo – o contribuinte inadimplente do contribuinte sonegador, esse ao qual incumbe toda a penalidade da Lei dos Crimes Contra a Ordem Tributária.
Antes de mais nada, é preciso entender que o fisco já aplica sanções administrativas àqueles que se encontram inadimplentes com o ICMS, sejam elas: retenções de mercadorias nos postos fiscais de fronteira, até o devido pagamento do imposto; margem de valor agregado maior para recolhimento da antecipação dos contribuintes inadimplentes; execuções fiscais com bloqueios e penhoras de bens; não emissão de certidões de débito; regimes especiais com obrigatoriedade de recolhimento de impostos diariamente, etc. Ou seja, os fiscos estaduais já punem os contribuintes inadimplentes nas formas da lei.
Indubitavelmente, o contribuinte que deixa de pagar o tributo pela dificuldade financeira real, já paga um alto preço pela ineficiência de caixa do seu comércio, não devendo este, por mais forçosa que seja a interpretação, ser enquadrado como sonegador.
Agora, aquele contribuinte que de forma dolosa, frauda o fisco e deixa de pagar o tributo por motivos escusos, sobre este sim devem recair todas as penas da Lei 8.137/90, uma vez que sua conduta cria vantagem competitiva diante dos demais, causando grande prejuízo ao sistema tributário nacional.
É leviano acreditar que todos que declaram o ICMS e não o recolhem são sonegadores, haja vista a crise que vive hoje o Brasil, e, consequentemente, os empresários. O simples não recolhimento do ICMS declarado, sumariamente, não passa de uma mera inadimplência, a qual deve ser cobrada pelo fisco com o rigor da lei, porém, mesmo que numa interpretação forçosa, essa mera inadimplência não poderá ser encarada como sonegação fiscal.